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Consórcio que inclui brasileiros sequencia o genoma referência do café arábica
O café é uma das commodities mais negociadas no mundo e a espécie Coffea arabica é a mais consumida entre as cerca de 130 existentes.
Ela é o resultado da fusão de duas outras espécies: Coffea canephora (conhecido no Brasil como café conilon ou robusta) e Coffea eugenioides. Nos últimos dez anos, quase todas as grandes commodities do mundo tiveram um genoma de referência sequenciado, mas o café só recentemente passou a integrar essa lista.
O genoma referência é crucial para o desenvolvimento de cultivares mais adaptados às mudanças climáticas e resistentes a doenças. Ao sequenciar o genoma referência do café arábica em um trabalho inédito, um consórcio de cientistas conseguiu selecionar genes possivelmente responsáveis (genes candidatos) pela resistência do café à ferrugem e a outras doenças. Em paralelo, identificou a expressão de alguns genes relacionados ao aroma do arábica.
“Com o conhecimento do genoma é possível obter informações que permitem ir para dois lados: o do desenvolvimento de variedades por meio de direcionamento de cruzamentos, ou seja, como uma referência para nos guiar em futuros cruzamentos que produzam novas variedades; e o das intervenções mais diretas, como modificar um gene especificamente”, resume Douglas Domingues, atualmente pesquisador do Grupo de Genômica e Transcriptômica em Plantas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) e um dos autores do trabalho.
Já o grupo do qual Domingues faz parte sequenciou uma planta que, do ponto de vista agronômico, não tem interesse, mas do ponto de vista genético tem muito a oferecer.
“A vantagem do nosso genoma de referência é que ele é derivado de um indivíduo ‘di-haploide’ [tem dois conjuntos de cromossomos]. Isso leva a um genoma de referência homogêneo, que será um padrão superior para pesquisas futuras”, explica Patrick Descombes, coordenador do trabalho e expert sênior em genômica do Nestlé Institute of Food Safety & Analytical Sciences. Ele explica que o café arábica é um tetraploide (quatro conjuntos de cromossomos): tem dois genomas dentro de um, porque é a fusão de duas outras espécies.
Ao sequenciar um di-haploide derivado do café arábica, em comparação com um cultivar tetraploide comum, cientistas conseguem uma visão mais clara e simplificada do genoma. Isso permite identificar com maior precisão as variações entre genes similares, facilitando o uso das informações moleculares para estudos de melhoramento.
Neste trabalho, o grupo conseguiu determinar com mais acuidade o tempo em que essa fusão se deu: há, no máximo, 600 mil anos o C. canephora e o C. eugenioides se fundiram nesse híbrido tetraploide, que seguiu seu caminho evolutivo. “Chegamos a essa conclusão usando informações de DNA do arábica, do robusta e do eugenioides: conseguimos fazer uma inferência mais acurada, pois, antes, esse intervalo estava datado entre 50 mil e 1 milhão de anos. Diminuímos essa janela para 350 a 600 mil anos”, relata Domingues.
“Usamos a sequência de referência para entender a diversidade existente nos cafés arábicas silvestres, da região africana de origem, e comparar isso com os cafés arábicas que são cultivados hoje em dia”, diz o cientista da Esalq-USP, explicando que o grupo fez um ressequenciamento de variedades de café arábica plantadas em diferentes partes do mundo, e também de espécimes silvestres coletadas nas florestas da Etiópia, e conseguiu entender a diferença entre as silvestres e as cultivadas.
Para obter uma perspectiva genômica da história evolutiva do arábica, o consórcio sequenciou 46 acessos, incluindo três robusta, dois eugenioides e 41 arábica.
Este último incluía um espécime-tipo do século 18 (o espécime físico que o autor do táxon designou no momento da descrição como sendo o material no qual se baseou), 12 cultivares com diferentes histórias de reprodução, o híbrido de Timor (um cruzamento espontâneo do arábica com a variedade robusta do C. canephora resistente a pragas) e cinco dos seus retrocruzamentos com arábica e 17 acessos selvagens mais três selvagens/cultivados recolhidos no leste e lados ocidentais do Grande Vale do Rift, na Etiópia.
“Nós utilizamos as mais recentes tecnologias genômicas, ou seja, leituras longas do sistema PacBio [para sequenciamento de genes] de alta fidelidade e ligação de proximidade com leituras curtas de Illumina [um sistema integrado para análise de variação genética e função biológica] para gerar a montagem cromossômica. Essa combinação levou a uma montagem em nível cromossômico de altíssima qualidade e integridade”, ressalta Descombes.
Segundo o professor da Esalq-USP, entre as espécies cultivadas, algo muito importante para o melhoramento foi a introdução de genes de resistência à ferrugem das folhas de café.
“Nos anos 30, o Brasil teve um papel relevante nesse sentido. E o IAC [Instituto Agronômico de Campinas] é um centro pioneiro de estudos e melhoramento. Pesquisadores do IAC nos forneceram plantas anteriores ao programa de melhoramento da instituição, que é da década de 1930. O melhoramento voltado a doenças surgiu entre os anos 1960-1970, sendo que o principal trabalho foi cruzar uma planta de arábica resistente à ferrugem, o chamado híbrido de Timor, com plantas cultivadas em vários países para que as novas variedades fossem resistentes. Mas não se sabia quais os genes responsáveis pela resistência.”
O híbrido de Timor foi descoberto nos campos da Ilha de Timor na década de 1920 e é naturalmente resistente à ferrugem e a outras doenças.
“Além da ferrugem, a doença dos frutos do café, a broca dos frutos do café e a broca do caule do café são três outras pragas importantes que afetam a produção em muitas regiões do mundo. As alterações climáticas são também uma preocupação fundamental no controle de pragas e doenças, uma vez que permitem a propagação a novas regiões. O comércio de grãos de café verde entre diferentes regiões é outro fator que pode facilitar a propagação de certas pragas e doenças a novas áreas”, revela Maud Lepelley, gerente do grupo de Genética de Plantas e Química no Nestlé Institute of Agricultural Sciences.
No trabalho publicado agora, o grupo conseguiu encontrar conjuntos de genes que, na literatura, já eram relacionados à resistência a doenças e que estão presentes só nas variedades pós-melhoramento.
“De alguma forma, o híbrido de Timor conseguiu receber esses genes de resistência e agora sabemos quais. São dezenas, mas nós reduzimos esse espaço de procura. O café arábica tem 69 mil genes; diminuímos para pouco menos de 30 genes. Conseguir identificar esses genes candidatos de resistência, antes desconhecidos, é um feito inédito da nossa pesquisa”, revela Domingues.
O consórcio conseguiu, ainda, utilizando a genética molecular, fazer uma tripla separação: mostrar que a diversidade genética das plantas silvestres da Etiópia é distinta da do café cultivado hoje, provavelmente por um efeito de gargalo e domesticação, pois poucas plantas foram selecionadas para esse processo.
“Mostramos aqui que a diversidade genética já era muito baixa entre os exemplares silvestres devido a múltiplos gargalos pré-domesticação e que os genótipos selecionados para cultivo pelo homem, tanto os antigos cultivares locais etíopes quanto os mais recentes, já estavam um tanto misturados entre linhagens divergentes”, afirmam os cientistas.
Em paralelo, o grupo de Domingues conseguiu observar algumas ocorrências relacionadas à expressão de genes ligados à qualidade do café, sobretudo o aroma.
Eles estudaram as enzimas terpeno sintases, que nas plantas estão relacionadas à defesa contra insetos, além de um gene vinculado a compostos lipídicos do café, que codifica a dessaturase de ácido graxo 2.
“Observamos, em uma variedade asiática do arábica, que os genes ligados a aroma e sabor são mais expressos nos frutos pelo subgenoma do C. eugenioides do que pelo outro progenitor. Ou seja: um dos genomas contribui mais que o outro para as características sensoriais da bebida. O que nos perguntamos agora é: será que isso se aplica a todas as variedades que sequenciamos, tanto pré quanto pós-melhoramento?”, diz Domingues. (Karina Ninni/Agência FAPESP)