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COVID longa está ligada a dano duradouro na mitocôndria, a ‘fábrica’ de energia das células
Estudo internacional revela que o vírus da COVID-19 pode prejudicar em diversos tecidos do organismo a função da mitocôndria – a “usina” de energia das células –, criando um efeito global e prolongado em todos os órgãos do infectado.
A descoberta de um efeito sistêmico relacionado com a inibição da função mitocondrial abre caminho para a busca de novos tratamentos tanto para casos graves da doença quanto para pacientes com COVID longa.
“A disfunção mitocondrial provocada pelo SARS-CoV-2 se mantém conservada, mesmo quando o vírus é eliminado. Isso configura mais um efeito sistêmico da doença. Neste trabalho, verificamos que o processo ocorre em vários tecidos do organismo, não só nas células do sistema imune [monócitos] ou apenas no pulmão, como se imaginava inicialmente. A disfunção mitocondrial pode ocorrer em todo o organismo e, entre as consequências, está o aumento da resposta inflamatória em pacientes graves”, explica Pedro Moraes-Vieira, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp).
Este estudo em específico é a continuação de uma investigação iniciada no ano de 2020, com apoio da FAPESP, na qual a equipe da Unicamp, liderada por Moraes-Vieira, descobriu que a COVID-19 poderia gerar disfunções na mitocôndria. Contudo, ainda não estava comprovado que se tratava de um problema generalizado.
No artigo mais recente, os pesquisadores analisaram a infecção pelo vírus causador da COVID-19 em dois modelos animais (hamsters e camundongos).
Além disso, examinaram dados referentes a mais de 700 amostras nasofaríngeas (de pessoas saudáveis e de pacientes com infecção pelo SARS-CoV-2 em estágio inicial) e 35 amostras de tecidos obtidas por meio de autópsia (de indivíduos com infecção em estágio avançado) – todas coletadas durante a pandemia na cidade de Nova York.
As análises revelaram que o vírus suprime a expressão de certos genes mitocondriais (vale lembrar que essa organela possui material genético próprio, o DNA mitocondrial).
Esse processo afeta vias bioquímicas, a produção de energia celular e a ativação da resposta imune. Isso faz com que a célula comece a usar uma via alternativa para produção de energia, a chamada glicólise, que consiste na quebra da molécula de glicose em duas moléculas de ácido pirúvico, que passam a servir como fonte de energia para o vírus.
Dessa forma, ele consegue se replicar mais, desencadeando uma resposta inflamatória mais exacerbada, ou seja, a forma grave da COVID-19.
Mas o efeito sistêmico de inibir a função mitocondrial não para por aí. “Observamos que, mesmo quando o vírus era eliminado do organismo e a inibição dos genes mitocondriais no pulmão havia cessado, a expressão desses genes mitocondriais no coração, rim, fígado ou nos gânglios linfáticos permanecia prejudicada, levando potencialmente à patologia grave da COVID-19.
Acreditamos também que essa inibição dos genes mitocondriais possa estar relacionada com a chamada COVID longa quando não há mais vírus. O paciente está curado da doença, mas alguns sintomas e sequelas persistem”, comenta Moraes-Vieira.
Como lembra o pesquisador, os experimentos feitos em monócitos infectados pelo grupo da Unicamp, em 2020, mostraram que a supressão dos genes mitocondriais quase inativou o processo de fosforilação oxidativa, que utiliza a energia liberada pela oxidação de nutrientes para produzir a molécula conhecida como trifosfato de adenosina, ou ATP, que serve de “combustível” para as células.
Já as amostras nasofaríngeas e de tecidos analisadas no estudo agora publicado mostraram que a supressão de genes e da função mitocondrial estava ocorrendo em diferentes órgãos, como coração, fígado, rins e gânglios linfáticos.
“Mesmo após a eliminação do vírus, a inibição de genes relacionados à fosforilação oxidativa permanecia. Parece ser um quadro irreversível se pensarmos em casos de COVID longa. Isso abre caminho para buscar novos tratamentos que envolvam a restauração da função mitocondrial. E é justamente nesse ponto que vamos focar nos próximos estudos”, comenta. (Maria Fernanda Ziegler/Agência FAPESP)