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Flexibilidade no desenvolvimento embrionário pode explicar a evolução de semelhanças em diferentes animais
O que uma cecília, também conhecida como cobra-cega, uma serpente e um peixe-boi (ou manati) têm em comum? A Biologia do Desenvolvimento consegue responder essa pergunta com a mais recente descoberta dos pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.
O grupo, liderado pela professora Tiana Kohlsdorf, identificou a interação entre uma proteína (Hox10) e a região de DNA que regula a expressão de um gene (myf5) repetidamente em animais de linhagens distintas.
A interação entre esses dois componentes – a proteína Hox10 e a região de DNA que regula a expressão do gene myf5– determina o desenvolvimento embrionário de costelas nas regiões do tronco em anfíbios, répteis e mamíferos.
Mudanças na interação entre esse gene e a proteína podem determinar a formação de costelas associadas às vértebras na região lombar do tronco em embriões de cecílias (cobras-cegas), manatis (peixe-boi), elefantes e serpentes, animais de grupos bastante distintos cujas linhagens divergiram há mais de 340 milhões de anos.
Outros vertebrados, como lagartos, camundongos e os seres humanos, não apresentam vértebras na região lombar.
“A proteína Hox10 inibe a expressão do gene myf5”, diz Tiana Kohlsdorf. No decorrer do desenvolvimento do embrião de um camundongo, por exemplo, a presença de Hox10 na região lombar impede a expressão do gene myf5, responsável pela formação das costelas nos animais vertebrados, o que resulta na ausência de costelas nesta região.
Nas cecílias, manatis, elefantes e serpentes, aconteceu uma mutação nessa região que regula a expressão do gene myf5, e essa mutação impede a interação dessa região com a proteína Hox10. Sem essa interação, a expressão do gene myf5 não é impedida, e as costelas se desenvolvem na região lombar.”
A professora ressalta que um resultado interessante desse trabalho é que os autores descrevem também mutações na proteína Hox10, reforçando que qualquer mudança que impeça essa interação pode resultar na evolução de animais que apresentam costelas na região lombar.
“Esse mecanismo, em que mudanças nos diferentes componentes de uma interação produzem uma morfologia semelhante, poderia conferir uma ‘flexibilidade evolutiva’ aos grupos animais.”
O primeiro passo da equipe de pesquisadores foi montar uma base de dados, com cerca de 230 espécies de vários grupos de animais vertebrados, entre eles as cecílias e salamandras, do grupo dos anfíbios, serpentes e lagartos, representantes dos répteis, e elefantes e manatis, que são mamíferos.
“Essa base de dados foi compilada buscando sequências disponíveis em repositórios e bases de dados públicos, como, por exemplo, o GenBank. Mas nós também sequenciamos essa região regulatória em diversas espécies de serpentes no nosso laboratório”, conta Tiana Kohlsdorf.
A pós-doutoranda Anieli Guirro aplicou análises de bioinformática nas sequências de nucleotídeos (subunidade que forma o DNA e o RNA) da região regulatória do gene myf5.
A partir disso, as pesquisadoras identificaram uma mutação comum às cobras-cegas, serpentes, manatis e elefantes que “difere do nucleotídeo observado nessa posição em outros animais que possuem uma região lombar sem costelas, que seria o caso das aves, dos lagartos e, nos mamíferos, os humanos e os cachorros, por exemplo”.
Anieli também utilizou bioinformática para analisar a proteína Hox10, e identificou mutações que são exclusivas de algumas serpentes.
Com a descrição do mecanismo segundo o qual mudanças em diferentes partes de uma interação molecular podem produzir o mesmo efeito morfológico, “podemos explicar essa grande diversidade de formas observadas na natureza e ainda entender como determinadas formas aparecem repetidamente em grupos evolutivamente mais distantes, como seria o caso, justamente, dos elefantes, manatis, das cecílias e das serpentes”, conclui Tiana Kohlsdorf. (Brenda Marchiori/Jornal da USP)