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Molécula extraída da peçonha de vespas é promessa para controle da epilepsia
Venenos e peçonhas podem parecer assustadores à primeira vista. Na natureza, os animais peçonhentos injetam toxinas capazes de alterar o metabolismo de outro animal e até matá-lo, mas também são considerados ferramentas valiosas para a ciência.
É o que ocorre com a peçonha da espécie de vespa social típica do Cerrado, conhecida popularmente como marimbondo-estrela. Cientistas brasileiros descobriram na peçonha do inseto uma substância com potencial para tratar epilepsia e, ao mesmo tempo, proteger o cérebro: a occidentalina-1202.
O estudo, realizado com experimentos em animais, foi conduzido pela pesquisadora Márcia Mortari nos laboratórios de biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCLRP) da USP, durante seu doutorado sob orientação do professor Wagner Ferreira dos Santos, do Departamento de Biologia da FFCLRP.
Os resultados da pesquisa mostram o composto isolado da peçonha da vespa como eficaz no tratamento de modelos agudos e crônicos de epilepsia, sem efeitos colaterais no comportamento motor e cognitivo dos animais testados.
Ao lado desses benefícios, observaram também atividade protetora sobre as células nervosas do cérebro.
Segundo o professor Santos, a occidentalina-1202 consegue atravessar a barreira hematoencefálica (que protege o cérebro de substâncias nocivas presentes no sangue), chegar ao cérebro e bloquear a ação do cainato, uma toxina que atinge os neurônios e é utilizada experimentalmente para induzir crises epilépticas em animais, através dos receptores específicos para o glutamato (ou ácido glutâmico).
O composto atua nesse sistema de receptores e protege o cérebro da “excitotoxicidade” que resulta na morte dos neurônios.
“É isso que ocorre na epilepsia, como em outras doenças agudas e crônicas do tecido nervoso”, afirma o professor ao informar que a occidentalina-1202(s) então é capaz de “bloquear a ligação do cainato nos seus receptores, inibindo a continuação desta cascata lesiva, causando a neuroproteção.”
Tudo começa com a coleta das vespas fêmeas, que são cuidadosamente congeladas para preservar suas propriedades.
Após a captura, o veneno é então extraído e purificado. Técnicas de separação específicas dividem a substância em partes menores, buscando identificar as que possuem propriedades medicinais.
Depois, “testamos novamente, e em seguida, purificamos completamente o composto capaz de ter o efeito antiepiléptico”, conta Márcia.
Definido o peptídeo promissor, a equipe de cientistas desenvolvem um análogo, uma cópia modificada quimicamente que resulta então na occidentalina-1202(s), produto sintético que é mantido em solução específica (Ph entre 6,8 e 7,0) a 5ºC de temperatura por 72 horas para garantir sua estabilidade e pureza.
Em uma segunda fase, analisam os efeitos dos dois peptídeos (o natural e o sintético) em dois modelos de epilepsia aguda, induzidos por ácido caínico (o cainato) e pentilenotetrazol, substâncias que provocam convulsões.
A dose efetiva foi medida, tal como o índice terapêutico, os sinais elétricos do cérebro e a expressão de um gene chamado C-fos, que está relacionado à atividade neuronal.
Logo após, submetem a molécula sintética occidentalina-1202(s) a estudos mais específicos para avaliar sua eficácia na prevenção e controle de convulsões graves e prolongadas, além de obter informações detalhadas sobre os efeitos no tecido cerebral.
Já na quarta fase, verificam os possíveis efeitos adversos após a administração crônica, em testes que medem a capacidade de equilíbrio, memória e aprendizagem dos animais.
Por fim, propõem um mecanismo de ação com a occidentalina-1202(s), usando modelos computacionais com receptores de cainato, demonstrando como a substância pode ajudar a controlar a atividade elétrica excessiva no cérebro, potencialmente reduzindo as convulsões epilépticas.
A pesquisadora Márcia Mortari acrescenta que, para garantir a segurança em uso a longo prazo, testes seguem em andamento estudando o funcionamento e controle de neurotransmissores, como o glutamato, responsável por transmitir mensagens que estimulam a atividade dos neurônios e que, em níveis excessivos, pode causar crises epilépticas.
“Estamos realizando todos os testes necessários para determinar a segurança do uso desse composto, utilizando uma série de ensaios de toxicidade e de determinação de efeitos adversos.”
Caracterizada por convulsões causadas por descargas elétricas anormais no cérebro, a epilepsia atinge cerca de 50 milhões de pessoas ao redor do mundo e o tratamento envolve a administração de fármacos antiepilépticos que, apesar de eficazes no controle das crises, podem provocar uma variedade de efeitos colaterais. Entre eles estão sedação, sonolência, tontura, problemas de memória e concentração, e até mesmo danos à medula óssea e ao fígado.
A falha dos atuais tratamentos da epilepsia está na possibilidade de “causar problemas neurobiológicos, cognitivos, psicossociais e reduzir a qualidade de vida do paciente”, acrescenta o professor Santos, lembrando que, em alguns casos, esses medicamentos se tornam ineficazes, o que é chamado de farmacorresistência.
No caso da peçonha das vespas Polybia occidentalis, Márcia lembra que o efeito produzido pelas picadas na defesa e captura de presas sempre intrigou a comunidade científica.
“Elas são capazes de usar a peçonha para paralisar suas presas, no caso outros pequenos invertebrados”, explica.
Esse efeito, segundo a pesquisadora, gerou a hipótese de que a substância poderia agir no nosso cérebro, reduzindo a atividade excessiva que caracteriza as crises epilépticas.
Assim, o estudo desses compostos oferece “uma oportunidade de entendermos os mecanismos fisiológicos e bioquímicos que operam em diferentes organismos, inclusive em doenças, e assim desenvolver remédios”, afirma Santos, informando que existem inúmeros exemplos na ciência, como o captopril, um remédio para controle da pressão arterial que foi desenvolvido a partir de um peptídeo extraído da peçonha de uma serpente brasileira, a Bothrops jararaca.
Outro exemplo, “o ziconotide, um analgésico para controle da dor causada por câncer e/ou AIDS, que não é usado no Brasil, mas foi desenvolvido a partir de um peptídeo de um caracol marinho das Filipinas”. (Felipe Faustino/Jornal da USP)